Resumo: Este artigo tem por objeto desenvolver uma análise do conceito de Sistemas sob a Perspectiva Jusnaturalista e traça um paralelo a estes conceitos e modos de organicidade social através da análise da função da Coerção, trazida na obra “A Força do Direito’, de Frederick Schauer.Tem-se por questão analisar de que forma a teoria dos sistemas, sob a ótica Jusnaturalista, concebe métodos de organização do Direito e traçar um paralelo acerca da natureza do Direito como força, tipicamente manifesto através da coerção, em Schauer. Trata-se de uma análise descritiva e exploratória, realizada com base em pesquisa bibliográfica e doutrinária, de método indutivo.
Palavras-Chave:Direito e Sistemas. Jusnaturalismo. Força e Coerção.
Abstract:This article aims to develop an analysis of the concept of Systems under the Jusnaturalist Perspective and draws a parallel to these concepts and modes of social organicity through the analysis of the role of Coercion, brought in the work “A Força do Direito”, by Frederick Schauer. The aim is to analyze how systems theory, from a Jusnaturalist perspective, conceives methods of organizing Law and to draw a parallel about the nature of Law as a force, typically manifested through coercion, in Schauer. This is a descriptive and exploratory analysis, based on bibliographic and doctrinal research, using an inductive method.
Keywords: Law and Systems. Jusnaturalism. Force and Coercion.
1.INTRODUÇÃO
Este artigo desenvolve a análise do Direito através do conceito de sistemas sob a ótica inicialmente jusnaturalista e traça um paralelo entre essa visão de organização social e do Direito, bem como realiza um paralelo ou contraponto à visão do Direito sob a ótica do modelo proposto por Frederick Schauer, em sua obra, ‘A Força do Direito’.
Gonzaga[1] argumenta que, com o ânimo de melhor analisar o Jusnaturalismo e o direito natural como esteios do Direito Positivo, faz-se relevante o estudo das diferenças, conflitos e aproximações entre tais mecanismos de análise do Direito, razão porque o presente estudo tem relevância para o estudo do Direito enquanto fenômeno, natural e social e a percepção de ‘sistemas.
Sobre sistemas, Morin[2] afirma que “a organização é a maravilha do mundo físico”. No entanto, este é um conceito afastado da physis, de maneira que, para Morin, mesmo que se saiba estar presente a organização, tal é ser indispensável como ponto de partida para a noção e conceito de sistema.
Diniz[3], ensina que “[...] a lei natural é imutável em seus primeiros princípios. O direito Natural, imanente à natureza humana, independe do legislador humano. As demais normas, construídas pelos legisladores”, desta forma, são aplicações dos primeiros princípios naturais às contingências da vida, mas não são naturais, embora derivem do direito natural.
Unindo esses dois preceitos, à famosa frase “nenhum homem é uma ilha”[4] chegaremos à indispensabilidade de organização do convívio humano, partindo de princípios inicialmente ‘naturais’. Logo, a partir dessa noção de igualdade de condições, enquanto humanos – porém revestida de interesses muitas vezes antagônicos – surge, em qualquer tempo da história das sociedades, a necessidade de organicidade.
É certo que o moderno modelo de sistema jurídico não poderá se encaixado em todos os tempos da história da humanidade, porém, não há que se ignorar a existência de uma ordem própria afeta a cada tempo.
Assim, iniciando da premissa da existência de leis – escritas ou não – que organizam e possibilitam a convivência social em todos os tempos da história, didaticamente, analisamos o conceito de sistema, tal como hoje se apresenta, perpassando ainda, pelo conceito de jusnaturalismo.
Ainda, busca-se o contraponto a esta visão ou modelo de organização social através da análise da função da Coerção e do Direito Positivado na obra de Frederick Schauer[5], a Força da Lei, de como o Direito interage enquanto elemento essencial à organização social, e como se utiliza do elemento força para promover o ajuste necessário de condutas desejáveis e assim, promover o alinhamento do individuo às condições socialmente desejáveis de convívio.
Primeiramente, abordamos a concepção de que Direito não é um sistema ou uma teoria, trazido através da leitura de Schauer. Isso porque, para o autor, o Direito possui características dinâmicas e heterogêneas que não conformam em um único direito, podendo mesmo ser o nome que se atribui à diversos sistemas normativos, dispostos de acordo com cada cultura e época.
Nele, analisamos como o Direito -para Schauer, notadamente positivista - interage enquanto elemento essencial à organização social, e como se utiliza do elemento força, através da coerção e da ameaça e ou implementação da sanção para promover o ajuste necessário de condutas desejáveis.
Aliás, ao não reconhecer o Direito como uma teoria única ou um sistema, Schauer propõe que a característica típica mais presente nos diversos modelos e sob os diversos âmbitos que se propõe a analisar seja justamente o uso da força na forma de coerção e desta como método de conformação à obediência.
2.DESENVOLVIMENTO
2.1 A CONCEPÇÃO DE SISTEMA NO JUSNATURALISMO: RECORTES DA ERA MEDIEVAL À MODERNIDADE
Para Norberto Bobbio[6], sistema é o “todo” social ordenado ou, em suas palavras: “um conjunto de entes entre os quais existe uma certa ordem, de modo que não estejam somente em relacionamento com o todo, mas que exista coerência entre si.”
Se infere desse conceito que o direito como sistema garantirá critérios de pertinência das normas que compõem a ordem jurídica, já que, necessariamente, o sistema garantirá o conjunto harmônico das relações entre seus membros, ou seja, a pertinência e a estabilidade do sistema.
Diniz[7] leciona que:
Desde as representações primitivas de uma ordem legal de origem divina, até a moderna filosofia do direito natural de Stammler e Del Vecchio, passando pelos sofistas, estóicos, escolásticos, ilustrados e racionalistas dos séculos XVII e XVIII, a longa tradição do jusnaturalismo se vem desenvolvendo, com uma insistência e um domínio ideológico que somente as ideias grandiosas e os pensamentos caucionados pelas motivações mais exigentes poderiam alcançar.
As primeiras manifestações de organizações na Antiguidade são conhecidas por meio da Grécia e de Roma.
Em seus apontamentos, Jacques Leclercq[8] ensina que o Direito Natural é “o resultado dos princípios mais gerais sobre a ordem do mundo, usados para que se oponham aos governantes injustos”.Os gregos, elevavam seus ensinamentos e normas exemplificadas por meio das tragédias, Antígona de Sófocles, talvez, seja um dos primeiros registros em que a ideia da existência de um justo por natureza, pode se contrapor a um justo por lei.
Antígona entende que é sua obrigação enterrar seu irmão Polinice, que atentou contra a cidade de Tebas, e teve como “pena” a perda do direito de ser enterrado, por ordem do Rei da cidade, Creonte, que, promulgara uma lei, impedindo que os mortos que atentaram contra as normas da cidade fossem enterrados – o que era uma grande ofensa para o morto e sua família, pois a alma não faria a transição adequada ao mundo dos mortos, que tratavam o ritual fúnebre como uma ritual de limpeza e integridade do corpo.
Percebe-se que a Lei Positiva da pólis impede que o Direito Natural de Polinice a um funeral. O que fazer ante tão injusto imperativo? Antígona realiza os ritos fúnebres e sepulta o irmão, resistindo à Lei Positiva e fazendo valer o Direito Natural, muito embora condene-se à morte. Interpelada de como pôde transgredir a lei, Antígona[9] responde:
“[...] Essas não são as leis que fixaram para os homens e jamais pensei que tivesse defesas tão poderosas capazes de permitir a um mortal transgredir as leis não escritas, as inabaláveis leis divinas”.
Antígona, enfurecida, voltou-se contra o direito positivo. Sozinha reage à norma imposta e enterra o irmão, desafiando todas as leis da cidade. Antígona é, então, capturada e levada até Creonte, que a sentencia à morte.
Séculos depois de Homero, Platão dizia que “Homero educou a Grécia” com seus poemas sobre Aquiles – aquele que não conhece seu justo papel na sociedade, e, por isso transgride as Leis, versus Ulisses – que por conhecer seu papel na sociedade, o exerce com maestria.
Na Antiguidade, o homem se reconhece como membro social, e não se fala em direito individual, ao contrário, há um “sistema’ orgânico – baseado nos mitos – em leis divinas, advindas de Deuses, essencialmente um “sistema de deveres”.
Segundo Dallari[10],
[...] no final da Idade Média, no século XIII, aparece a grande figura de Santo Tomás de Aquino, que, tomando a vontade de Deus como fundamento dos direitos humanos, condenou as violências e discriminações, dizendo que o ser humano tem direitos naturais que devem ser sempre respeitados, chegando a afirmar o direito de rebelião dos que forem submetidos a condições indignas.
Documentos datados da última fase da Idade Média denotam a existência precursora de alguns valores defendidos nas futuras declarações de direito humanos, ainda que se tratasse da concessão de certos privilégios à nobreza e a um reduzido número de pessoas “livres”, e ainda que, dado o cunho estamental da sociedade, tais direitos se dirigissem exclusivamente a certas classes, outorgados numa sociedade econômica e socialmente desigual[11].
Como exemplo, os direitos concedidos pelo rei Afonso IX em 1188 às Cortes na Espanha, que permitiram aos acusados das classes sociais citadas o desenvolvimento regular do processo e a integridade de vida, honra, casa, assim como o direito de propriedade.
Outro exemplo é a Magna Carta Libertatum, de 1215, firmada pelo Rei João Sem Terra, direcionada aos bispos e aos barões ingleses, em que o rei garantia que homem livre não seria detido, preso, privado de seus bens, banido, ou incomodado, e garantia aos acusados julgamento consoante à lei da terra, e sem o qual não poderiam ser privados de sua liberdade[12], como descrito no capítulo 39 da primeira versão. A posteriori, Henrique III e Eduardo I ampliaram o rol de direitos, no capítulo 29:
[...] aprisionado, ou detido em prisão, ou privado de sua propriedade, ou banido, ou excluído, ou de qualquer outra forma molestado; e não agiremos contra ele, ou faremos agir contra ele, a não ser em caso de julgamento justo por seus pares ou pela lei do país.[13] [...]
Nenhum homem livre será tomado, aprisionado ou desaparelhado de sua propriedade alodial, ou liberdades, ou livres costumes, ou banido, ou exilado ou destruído de qualquer outra maneira e tampouco o puniremos, ou condenaremos, a não ser pelo julgamento legal de seus pares, ou pelas leis do país. A nenhum homem será negada a justiça e os direitos, e a nenhum homem serão estes vendidos.[14]
E, ainda, em 1769, o Habeas CorpusAmendmentAct, que anulava as prisões arbitrárias, e o Bill os Rights (1688), o mais importante, pois submetia a monarquia à soberania popular, transformando-a numa monarquia constitucional, sem esquecer do ActofSettlement (1707), que completa o conjunto de limitações ao poder monárquico do período.
No Ocidente, diversas declarações estouraram, tendo como marco histórico a Declaração de Direitos da Virgínia, em 1776, na qual constava “o desfrute da vida e liberdade, com os meios de adquirir e possuir propriedade, e a busca e obtenção de felicidade e segurança”.
Na idade média, Santo Tomás de Aquino, representante da escolástica, expôs os princípios jurídicos fundamentais em um verdadeiro sistema de Filosofia do Direito: ordem, liberdade, justiça, equidade, direito e lei, além da doutrina política do Estado e da sociedade.[15]
Das lições tomistas, conclui-se que os “limites da autoridade estatal através da lei positiva, que se inspirando num fim justo não pode ser arbitrária, então na própria fundamentação jusnaturalista do bem comum. Como corolário, as leis positivas que atentam contra os direitos fundamentais e inalienáveis da criatura humana, não são leis verdadeiras e, como tais, contrariando o direito natural, são a corrupção da lei, ferem o bem comum”.[16]
Com relação ao aspecto teológico defendido por Thomas Aquino[17] (1225- 1274, teólogo e filósofo da Igreja Católica Romana), este enraizou suas crenças no direito:
“à lei natural é promulgada pelo próprio Deus que a instilou na mente do homem, de modo a ser conhecida naturalmente por ele [...]”[18]
“[...] pelo contrário, Davi rezou a Deus para que pudesse Sua lei diante dele, dizendo (Sl 119:33) ‘Ponde diante de mim como lei o caminho de Vossas justificações, senhor [...]” [19]
“[...] pela lei natural, participa-se da lei eterna proporcionalmente à capacidade da natureza humana. Porém, para seu fim sobrenatural, o homem necessita ser dirigido de uma maneira mais elevada. Daí a lei adicional dada por Deus, pela qual o homem compartilha de maneira mais perfeita da lei eterna”.[20]
Santo Agostinho, ainda, em sua obra Cidade de Deus, apresenta a distinção e a hierarquia entre as leis Eterna e lei humana. Para ele, a lei eterna inspira a lei humana, da mesma forma que a natureza divina inspira a natureza humana. Em outras palavras, a fonte última de toda lei humana seria a própria lei eterna que se manifesta na lei natural.
Modernamente, a Revolução Francesa de 1789, com suas palavras de ordem – liberdade, igualdade e fraternidade; ou morte! –, não só inspirou todos os movimentos de ideais humanistas de séculos anteriores como até hoje representa um marco teórico das lutas pelos direitos humanos.
Tavares[21] ensina que:
Em 1789 a humanidade assistiu ao surgimento da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, que iria influenciar todo o constitucionalismo que se seguiu. Antes dela, porém, em solo norte-americano, tem-se a Declaração de Direitos da Virgínia, em 1.776. Já no século XX verifica-se uma proliferação de convenções de caráter universal ou regional, consagrando diversos direitos. Assim, tem-se a Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada em 1.948 pela Assembleia Geral da ONU, e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, só para citar duas delas.
A partir da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, esses direitos adquiriram status universal, de modo que, modernamente, praticamente nenhuma Constituição e/ou tratado deixam de fundamentar-se em seus preceitos.
Bobbio[22] já na modernidade, descreve a doutrina Jusnaturalista e discerne dois requisitos essenciais: a) A Admissão do Direito Natural como Direito;
b) A afirmação do direito natural como superior ao positivo. - Isso porque, este seria fonte advinda de normas que sejam justas.
Aliás, é a partir da idade moderna que a teoria dos sistemas sob o âmbito da normatividade jurídica começa a se generalizar enquanto conhecimento científico, sistemático, um nexo, uma intenção fundamental e geral capaz de ligar e configurar as partes como um todo.
Ainda nos séculos XVII e XVIII que floresceu a ideia dos sistemas como organismo, mecanismo e ordenação.[23]Emanuel Kant[24], também levanta importantes questões de caráter jusnaturalista, quando reconhece que há leis jurídicas derivadas da razão como anteriores ao Direito Positivo.
Gonzaga[25] o ‘estado civil’ surge não como meio de anular o direito natural, mas para possibilitar que seja exercido através da coerção. Ainda, Kant argumenta que o Direito Natural e o Positivo não possuem uma ideia de antítese, mas sim de integração.
Por outro lado, não se desconhece que, como Campilongo e Perez prelecionam, o positivismo trazido em Hans Kelsen[26] estabelece, através da compreensão do Direito como norma, a ideia de um sistema de normas, ou melhor, de uma ordem normativa sistematizada, que confere validade - e porque não dizer segurança? – A um sistema de normas.
Samuel Pufendorf, citado por Ferraz Jr[27] como grande sintetizador dos grandes sistemas de sua época”, afirma que o Direito Natural é firmado em prescrições que levam em conta ‘a natureza decaída do homem’.
A ‘natureza decaída do homem’ encontra, sob a ótica juspositivista, a analogia ao ‘homem mau’, ou o não cumpridor do justo ou do direito posto – a depender da teoria a que se pretenda analisar – presente na obra ‘A Força da Lei’, de Frederick Schauer.
Esse talvez seja o elemento agregador entre a análise dos sistemas sob a ótica jusnaturalista – que pressupõe um direito natural imanente e justo – ao modelo positivista de sistema jurídico sintetizado através da coerção como meio de organização social na obra “A Força do Direito”, em Frederick Schauer.[28]
2.2 A COERÇÃO E O MODELO POSITIVISTA DE ORGANIZAÇÃO DO DIREITO EM FREDERICK SCHAUER
E este talvez seja o maior elo de ligação ao conceito de Coerção – esta, já sob a ótica positivista presumida de Frederick Schauer.[29]Em sua obra “A Força do Direito”, F. Schauer traça o seguinte ponto de partida acerca do Direito e a teoria dos sistemas:
Oliver Wendel Holmes pode ter exagerado na crítica às teorias gerais ao declarar: ‘eu não me importo com os sistemas, apenas com as instituições’. Mas, ao menos no caso do direito, podemos historicamente, em particular na época recente, ter perdido muitas instituições por causa da insistente busca por uma única e unificadora descrição sistemática – uma teoria, se preferir. O Direito pode ser simplesmente um fenômeno social a possibilidade de o Direito não ser um fenômeno único ou passível de sistematização, mas sim o que nomina como ‘um fenômeno social muito heterogêneo para suportar uma só teoria unificadora de grande poder explicativo.[30]
E assim, Schauer[31] parte da premissa – positivista – de que o direito tem como elemento típico – ainda que não essencial – o fato de que obriga o ser ao cumprimento do que não quer fazer, ainda que não seja o único ‘habitante’ do universo das normas, sendo acompanhado também de outros, como a moralidade, a etiqueta e outros conjuntos de regras sociais, e tem por diferença que ele pode nos compelir – de muitas maneiras – a cumprir o que determina, ao contrário de outros sistemas normativos.
Isso porque o Direito possui – então - sistemas jurídicos dotados de capacidade sancionatória sistemática e reconhecidamente legítimo.
Ainda que outros jusfilósofos, seguidores de A.Hart – a quem Schauer se contrapõe- questionem se a força, a coerção e as sanções são importantes para a compreensão do Direito, fato é que necessita de algum elemento diferenciador, apontado por Schauer como ‘elemento típico’, ainda que não essencial ao conceito -, sendo este, a coerção.
Argumenta Schauer[32] que, a possibilidade da existênciade sociedades diversas que exerçam o Direito de acordo com suas culturas e modos de vida demonstram a dificuldade de se definir sistematicamente o Direito, apontando-o certamente não como um sistema ou uma teoria, mas sim como uma ‘descrição’ que depende de outros elementos, tendo como elemento agregador típico a característica de nos dizer o que fazer e também quais coisas ruins poderão acontecer caso não sejamos obedientes à ele.
É neste ponto que Schauer novamente retoma a teoria de Hart acerca da existência de um direito não dotado de coerção. É que, para A.Hart, o direito prescinde da coerção. É que Hart propõe a existência de um homem complexo (ou pessoa perplexa), aquela que segue o direito por ser direito.
Aborda que, para Hart[33], o Direito possui maior relação e dependência com a internalização das regras jurídicas, ou seja, que as pessoas internalizam as obrigações e a reconhecem como ‘um comando jurídico’, sendo este um motivo para não violar uma obrigação, independente de sanções.
Schauer[34], neste ponto, esclarece que a obrigação jurídica diverge de outras obrigações/sistemas de regras e contraproduz que ‘ sempre que estamos dentro de um sistema de regras, temos obrigações criadas por esse sistema. Se entendermos a moralidade como um sistema de regras (o que certamente nem todo mundo entende), a obrigação moral é constituída pelo conjunto de obrigações criadas por um sistema de regras que se aceita”.
Mas, pontua que tais obrigações não se igualam às de natureza jurídica – que são dotadas de sanção – que surge como elemento contingente, ainda que não necessário, ‘útil, mas não essencial, onipresente, mas não universal’, não sendo parte da natureza do Direito, mas dele tipicamente constituído.
Nesse ponto, Schauer reconhece a viabilidade de um direito sem coerção, através dos mecanismos de internalização proposto por Hart[35]. Mas, aponta que defensores de uma teoria essencialista do direito rechaçariam essa possibilidade, baseados no simples argumento de que mesmo o processo de internalização precisa de um ‘começo’, onde sanções necessitariam de ser impostas à consecução de condutas.
Entretanto, tal como pondera Schauer, mesmo essas pessoas ou a pessoa complexa – que segue o direito por ser direito – deve ser tão pequeno o número de pessoas que se torna difícil de se preocupar.
Recupera então o autor a ideia de ‘homem mau’, disposta em Wendell Holmes, mas dissociado de suas conotações desfavoráveis daquele – que tracejou um homem voltado egoisticamente aos seus interesses) e tão somente embasado em um indivíduo que seja inclinado a obedecer ao direito pela probabilidade de punição, onde demonstra que, por este, e embasado na existência de mais pessoas com essa natureza, é que o Direito tem como elemento típico a coerção.
A respeito da coerção sob a ótica de múltiplos sistemas jurídicos, Schauer [36]aponta que, se levarmos em consideração as variações culturais e outros elementos, é possível dizer que, culturalmente, há pessoas mais perplexas em alguns países do que em outros – bem como, os sistemas jurídicos também possuem pouca coisa em comum.
E pondera que tal conclusão não é necessariamente negativa, posto que:
Não há razão para que o Direito deva ter uma essência transcultural, e o ‘direito’ pode ser meramente o rótulo associado a uma coleção diversificada de fenômenos sócio-governamentais, não unidos por propriedades compartilhadas, nem interessantemente conectados a diferentes sistemas”.[37]
Ressalta Schauer[38] que, ainda sob essa ótica, a força coercitiva do Direito, ainda que não essencial, pode ser continuamente exercido entre as diferentes culturas que o poder normativo do Direito sem a coerção.
Ainda, partindo da – sempre presente ideia – de que o Direito não é uno e sistêmico, mas que existem sistemas normativos diversos, pergunta-se Schauer: o que ‘obriga a obrigar’- sob múltiplas vertentes – ou seja, o que permite ao Direito, através de seus agentes, a obrigar determinadas condutas e não outras? Nessa seara, responde que outras leis alicerçam o próprio cerne das obrigações a serem constituídas.
Citando o paradoxo da tartaruga como elemento central à questão dos sistemas normativos - onde pergunta-se a uma criança quem sustenta o Universo e ela responde que uma tartaruga, e ao inquirir-se a esta sobre quem segura a tartaruga, responder que outra tartaruga – questiona o Autor: ‘O que mantém toda a estrutura sem entrar em colapso? Em que se baseia a validade de um sistema jurídico? ”
Schauer[39] sustenta nesse ínterim que os sistemas jurídicos encontram por base leis superiores – exemplifica na Constituição dos Estados Unidos – que regulariam e seriam a ‘pedra angular’ de seus fundamentos.
Por vezes, tais sistemas são aderidos por mecanismos de cooperação e de coordenação, pondera Schauer e optar pelo uso da força apenas para a manutenção de um determinado sistema, sendo que a escolha, em princípio, de um sistema, não necessariamente precisa ser determinado pela coerção diretamente.
Entretanto, conclui o autor, embora não negue a possibilidade de que um sistema jurídico possa existir sem coerção e sem a sanção, não de conhece se realmente tal sistema jurídico de fato existe, uma vez que esta, ao que parece – até mesmo para Hart[40], segundo Schauer – é uma ‘necessidade natural de todos os sistemas jurídicos atuais’.
Assim, ainda sobre a natureza não sistêmica do Direito, aborda que, a partir da libertação de amarras sobre a filosofia jurídica e a teoria jurídica acerca de critérios essenciais do direito podemos finalmente buscar as características ordinárias, típicas ou contingencialmente universais do Direito de onde se retira com ainda mais clareza a importância da coerção – derivada da escassez de pessoas perplexas e pessoas capazes de praticar a internalização de comandos jurídicos ‘imanentes’.
3.CONCLUSÃO
Compreender os diferentes métodos de concepção e estudo da conformação do Direito e de organização humana são fundamentais para a compreensão analítica, histórica e filosófica da sociedade através da evolução ou estudo do Direito e sistemas jurídicos.
No presente trabalho traçamos parâmetros e métodos para a identificação do desenvolvimento de sistema sob concepções jusnaturalistas, e partindo destes, compreendemos como esta corrente jusfilosófica concebia a organização humana, partindo do preceito do ‘justo’, bem como traçamos um paralelo com as ideias positivistas/ normativistas de Frederick Schauer apresentam o Direito não como teoria ou como sistema, dada a sua quantidade de possibilidade de desenvolvimento e desdobramento dentro de cada sistema normativo, mas sim como elemento dotado de coerção como característica típica da maioria dos sistemas jurídicos.
Isso porque, Schauer apresenta a compreensão do fenômeno jurídico como dotado de múltiplos sistemas – não dotados ou capazes de produzir uma concepção uma de Direito.
É nesse ponto que Schauer aponta a coerção como elemento típico ao Direito – e talvez, um dos mais capazes de discernir um sistema de normas do próprio ‘Direito’.
A proposta do presente trabalho – compreender mecanismos diversos de compreensão da organização social humana, partindo de uma perspectiva da teoria dos sistemas sob a ótica Jusnaturalista e desaguando na concepção de Schauer de que Direito não é uma teoria uma que pode ser sistematizada, mas sim várias interações, ‘direitos, forças e coerções’ atuando sobre outros sistemas (morais, sociais, etc.), foi possível perceber que – tal como toda a história do pensamento jurídico – há muitas vertentes e meios de se encontrar com o direito enquanto meio regulador da sociedade.
Mais ainda. No começo deste trabalho foi possível identificar uma maior interação ou conformidade das teorias jusnaturalistas para explicar métodos de organização social (sistemas).
Porém, no curso das múltiplas indagações propostas por Schauer acerca da natureza humana e da função do Direito dentro de múltiplos sistemas e culturas, foi possível perceber a importância do elemento coerção como típico ao Direito enquanto, inclusive, garantidor da manutenção de acordos firmados, ainda que tenham sido originalmente precedidos de coerção – como por exemplo, a teoria dos sistemas sob a ótica Jusnaturalista.
Como sustentado por Schauer, a análise da força, tida sob uma perspectiva ampliada – dissociada da violência explicitada em armas ou exércitos, nota-se que o papel da sustentação da força junto aos sistemas jurídicos parece ainda mais lógico, pois é utilizado como mecanismo de conformidade e até mesmo – de paz - através da manutenção de uma ordem lógica que promova a conformidade e a obediência.
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[9] Antígona, datada por alguns estudiosos 442 a. C, traz uma tragédia dramática, que compõe a terceira parte da Trilogia de Tebas de Sófocles juntamente com Édipo Rei e Édipo em Colosso”.Cf.: CANEDO, Eloisa. A Lei em Antígona: Uma Análise Crítica. [S. I.]. 2017. Disponível em: <https://juridicocerto.com/p/canedo-e-silva-adv/artigos/a-lei-em-antigona-uma-analise-critica-3262>. Acesso em: 10 jul. 2022.
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[25] GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Direito natural e jusnaturalismo. Enciclopédia jurídica da PUC- SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: <https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/63/edicao-1/direito-natural-e- jusnaturalismo>. Acesso em: 10 jul. 2022.
[26] 27CAPILONGO, Celso Fernandes.; PEREZ, Ane Elisa. Vista do a validade da norma e o fechamento operativo do sistema em Kelsen e Luhmann. 2015. Disponível em: <https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/63/edicao-1/direito-natural-e-jusnaturalismo>. Acesso em: 10 jul. 2022.
[29] FERREIRA, Emanuel Melo. O positivismo presumido de Frederick Schauer e sua aplicação na interpretação judicial das regras de competência constitucionais. Revista Brasileira de Filosofia do Direito, v. 5, n. 1, p. 37-53, 2019. p. 11.
Discente do curso de Mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogada Criminalista.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VILHENA, Jacileia Rocha de. O conceito de sistema na perspectiva jusnaturalista e a função da coerção na obra ‘A Força do Direito’ em Frederick Schauer Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 jul 2023, 04:39. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /61972/o-conceito-de-sistema-na-perspectiva-jusnaturalista-e-a-funo-da-coero-na-obra-a-fora-do-direito-em-frederick-schauer. Acesso em: 28 dez 2024.
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